domingo, 4 de agosto de 2013

Dos sonhos

" - Neste momento eu não tinha sonho nenhum, mas é-me suave pensar que o podia estar tendo. Mas o passado — por que não falamos nós dele?
 - Decidimos não o fazer. Breve raiará o dia e arrepender-nos-emos. Com a luz os sonhos adormecem. O passado não é senão um sonho. De resto, nem sei o que não é sonho. Se olho para o presente com muita atenção, parece-me que ele já passou. O que é qualquer cousa? Como é que ela passa? Como é por dentro o modo como ela passa? Ah. falemos, minhas irmãs, falemos alto, falemos todas juntas. O silêncio começa a tomar corpo, começa a ser cousa. Sinto-o envolver-me como uma névoa. Ah, falai, falai!...
- Para quê?... Fito-vos a ambas e não vos vejo logo. Parece-me que entre nós se aumentaram abismos. Tenho que cansar a idéia de que vos posso ver para poder chegar a ver-vos. Este ar quente é frio por dentro, naquela parte em que toca na alma. Eu devia agora sentir mãos impossíveis passarem-me pelos cabelos — é o gesto com que falam das sereias. Ainda há pouco, quando eu não pensava em nada, estava pensando no meu passado.
 - Eu também devia ter estado a pensar no meu.
 - Eu já não sabia em que pensava... No passado dos outros talvez..., no passado de gente maravilhosa que nunca existiu... Ao pé da casa de minha mãe corria um riacho. Por que é que correria, e por que é que não correria mais longe. ou mais perto? Há alguma razão para qualquer coisa ser o que é? Há para isso qualquer razão verdadeira e real como as minhas mãos?
 - As mãos não são verdadeiras nem reais. São mistérios que habitam na nossa vida... às vezes, quando fito as minhas mãos, tenho medo de Deus. Não há vento que mova as chamas das velas, e olhai, elas movem-se. Para onde se inclinam elas? Que pena se alguém pudesse responder! Sinto-me desejosa de ouvir músicas bárbaras que devem agora estar tocando em palácios de outros continentes. É sempre longe da minha alma."

[Fernando Pessoa - o eu profundo e outros eus]

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