"...Na clepsidra da nossa imperfeição gotas regulares de sonho marcavam horas irreais. Nada vale a pena, ó meu amor longínquo, senão o saber como é suave saber que nada vale a pena.
O movimento parado das árvores; o sossego inquieto das fontes; o hálito indefinido do ritmo íntimo das seivas; o entardecer lento das coisas, que parece vir-lhes de dentro e dar mãos de concordância espiritual ao entristecer longínquo, e próximo à alma do alto silêncio do céu; o cair das folhas, compassado e inútil, pingos de alheamento, em que a paisagem se nos torna toda para os ouvidos e se entristece em nós como uma pátria recordada — tudo isto, como um cinto a desatar-se, cingia-nos, incertamente.
Ali vivemos um tempo que não sabia decorrer, um espaço para que não havia pensar em poder-se medi-lo. Um decorrer fora do tempo, uma extensão que desconhecia os hábitos da realidade no espaço. Que horas, ó companheira inútil do meu tédio, que horas de desassossego feliz se fingiram ali. Horas de cinza de espírito, dias de saudade espacial, séculos interiores de paisagem externa.
E nós não nos perguntávamos para que era aquilo que não era para nada. Nós sabíamos ali, por uma intuição que por certo não tínhamos, que este dolorido mundo onde seríamos dois, se existia, era para além da linha externa onde as montanhas são hábitos de formas, e para além dessa não havia nada. E era por causa da contradição de saber isto que a nossa hora de ali era escura como uma caverna em terra de supersticiosos, e o nosso senti-la era estranho como um perfil de cidade mourisca contra um céu de crepúsculo outonal."
[Fernando Pessoa - Eu profundo e outros eus]
terça-feira, 6 de agosto de 2013
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