terça-feira, 13 de agosto de 2013

Do interior

"-Tenho um medo disforme de que Deus tivesse proibido o meu sonho. Ele é sem dúvida mais real do que Deus permite. 
- Não estejais silenciosas. Dizei-me ao menos que a noite vai passando, embora eu o saiba.
- Vede, começa a ir ser dia.
- Vede: vai haver o dia real. 
- Paremos. Não pensemos mais. Não tentemos seguir nesta aventura interior. Quem sabe o que está no fim dela? 
- Tudo isto, minhas irmãs, passou-se na noite. Não falemos mais disto, nem a nós próprios. É humano e conveniente que tomemos, cada qual, a sua atitude de tristeza.
- Foi-me tão belo escutar-vos. Não digais que não. Bem sei que não valeu a pena. É por isso que o achei belo. Não foi por isso, mas deixai que eu o diga... De resto, a música da vossa voz, que escutei ainda mais que as vossa palavras, deixa-me. talvez só por ser música, descontente. 
- Tudo deixa descontente, minha irmã. Os homens que pensam cansam-se de tudo, porque tudo muda. Os homens que passam provam-no, porque mudam com tudo. De eterno e belo há apenas o sonho. Por que estamos nós falando ainda?
- Não sei. 
- Por que é que se morre?
- Talvez por não se sonhar bastante.
- É possível.
- Não valeria então a pena fecharmo-nos no sonho e esquecer a vida, para que a morte nos esque-cesse?
- Não, minha irmã, nada vale a pena. 
- Minhas irmãs, é já dia. Vede, a linha dos montes maravilha-se. Por que não choramos nós? 
- Aquela que finge estar ali era bela, e nova como nós, e sonhava também. Estou certa que o sonho dela era o mais belo de todos. Ela de que sonharia?
- Falai mais baixo. Ela escuta-nos talvez, e já sabe para que servem os sonhos."

[Fernando Pessoa - O eu profundo e outros eus]

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