quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Da luz

"Tudo claro
Ainda não era o dia 
Era apenas o raio"

[Paulo Leminski]

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Do interior

"-Tenho um medo disforme de que Deus tivesse proibido o meu sonho. Ele é sem dúvida mais real do que Deus permite. 
- Não estejais silenciosas. Dizei-me ao menos que a noite vai passando, embora eu o saiba.
- Vede, começa a ir ser dia.
- Vede: vai haver o dia real. 
- Paremos. Não pensemos mais. Não tentemos seguir nesta aventura interior. Quem sabe o que está no fim dela? 
- Tudo isto, minhas irmãs, passou-se na noite. Não falemos mais disto, nem a nós próprios. É humano e conveniente que tomemos, cada qual, a sua atitude de tristeza.
- Foi-me tão belo escutar-vos. Não digais que não. Bem sei que não valeu a pena. É por isso que o achei belo. Não foi por isso, mas deixai que eu o diga... De resto, a música da vossa voz, que escutei ainda mais que as vossa palavras, deixa-me. talvez só por ser música, descontente. 
- Tudo deixa descontente, minha irmã. Os homens que pensam cansam-se de tudo, porque tudo muda. Os homens que passam provam-no, porque mudam com tudo. De eterno e belo há apenas o sonho. Por que estamos nós falando ainda?
- Não sei. 
- Por que é que se morre?
- Talvez por não se sonhar bastante.
- É possível.
- Não valeria então a pena fecharmo-nos no sonho e esquecer a vida, para que a morte nos esque-cesse?
- Não, minha irmã, nada vale a pena. 
- Minhas irmãs, é já dia. Vede, a linha dos montes maravilha-se. Por que não choramos nós? 
- Aquela que finge estar ali era bela, e nova como nós, e sonhava também. Estou certa que o sonho dela era o mais belo de todos. Ela de que sonharia?
- Falai mais baixo. Ela escuta-nos talvez, e já sabe para que servem os sonhos."

[Fernando Pessoa - O eu profundo e outros eus]

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Da bruma

"Raiam na minha atenção vagos ruídos, nítidos e dispersos, que enchem de ser já dia a minha consciência do nosso quarto. 
Nosso quarto? Nosso de que dois, se eu estou sozinho? 
Não sei. 
Tudo se funde e só fica, fingindo, uma realidade-bruma em que a minha incerteza soçobra e o meu compreender-me, embalado de ópios, adormece. 
A manhã rompeu, como uma queda, do cimo pálido da Hora. 
Acabaram de arder, meu amor, na lareira da nossa vida, as achas dos nossos sonhos."

[Fernando Pessoa - o eu profundo e outros eus]

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Das coisas

"Tinha uma diferença nas coisas que eu não sabia explicar, mas ela estava lá, tudo sendo o que era de um jeito mais forte."

[J. A. Carrascoza]

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De certa forma é bom estar próxima de mim mesma, apesar de ruim.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Do aqui e agora do ontem

- Certo. Escolho não fugir mais.
Aceito verdadeiramente o enfrentamento do risco e suas implicações. Aceito como minha a angústia, e essa necessidade de resolução do que a princípio parece não ter remédio. Aceito todos os meus medos, minhas expectativas e consequentemente minhas frustrações presentes, passadas e até as futuras. Aceito minha insegurança gigante. 
- Ok. Escolha feita. E aí? E daí? E agora? Como trazer pra fora isto que há (houve? havia? haveria? haverá?) dentro? De que matéria é feita e qual a composição disto? O que sinto mas não sei definir. O que sei mas não como expressar. 
- Ainda não sei. Mas vou saber o que fazer com minha decisão. 
Porque eu escolho o enfrentamento disto que me acompanha por tanto tempo e escolho todas as consequências subjacentes a esse embate. 
Escolho o não à angústia.

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"A experiência é um automóvel com os faróis voltados pra trás. " - Pedro Nava

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Do risco


(...) É uma desilusão. Mas desilusão de quê? Se, sem ao menos sentir, eu mal devia estar tolerando minha organização apenas construída? Talvez desilusão seja o medo de não pertencer mais a um sistema. No entanto se deveria dizer assim: ele está muito feliz porque finalmente foi desiludido. O que eu era antes não me era bom. Mas era desse não-bom que eu havia organizado o melhor: a esperança. De meu próprio mal eu havia criado um bem futuro. O medo agora é que meu novo modo não faça sentido? Mas por que não me deixo guiar pelo que for acontecendo? Terei que correr o sagrado risco do acaso. E substituirei o destino pela probabilidade."

[Clarice Lispector - A paixão segundo G.H.]

Do crepúsculo

"...Na clepsidra da nossa imperfeição gotas regulares de sonho marcavam horas irreais. Nada vale a pena, ó meu amor longínquo, senão o saber como é suave saber que nada vale a pena. 
O movimento parado das árvores; o sossego inquieto das fontes; o hálito indefinido do ritmo íntimo das seivas; o entardecer lento das coisas, que parece vir-lhes de dentro e dar mãos de concordância espiritual ao entristecer longínquo, e próximo à alma do alto silêncio do céu; o cair das folhas, compassado e inútil, pingos de alheamento, em que a paisagem se nos torna toda para os ouvidos e se entristece em nós como uma pátria recordada — tudo isto, como um cinto a desatar-se, cingia-nos, incertamente. 

Ali vivemos um tempo que não sabia decorrer, um espaço para que não havia pensar em poder-se medi-lo. Um decorrer fora do tempo, uma extensão que desconhecia os hábitos da realidade no espaço. Que horas, ó companheira inútil do meu tédio, que horas de desassossego feliz se fingiram ali. Horas de cinza de espírito, dias de saudade espacial, séculos interiores de paisagem externa.

 E nós não nos perguntávamos para que era aquilo que não era para nada. Nós sabíamos ali, por uma intuição que por certo não tínhamos, que este dolorido mundo onde seríamos dois, se existia, era para além da linha externa onde as montanhas são hábitos de formas, e para além dessa não havia nada. E era por causa da contradição de saber isto que a nossa hora de ali era escura como uma caverna em terra de supersticiosos, e o nosso senti-la era estranho como um perfil de cidade mourisca contra um céu de crepúsculo outonal."


[Fernando Pessoa - Eu profundo e outros eus]

domingo, 4 de agosto de 2013

Dos sonhos

" - Neste momento eu não tinha sonho nenhum, mas é-me suave pensar que o podia estar tendo. Mas o passado — por que não falamos nós dele?
 - Decidimos não o fazer. Breve raiará o dia e arrepender-nos-emos. Com a luz os sonhos adormecem. O passado não é senão um sonho. De resto, nem sei o que não é sonho. Se olho para o presente com muita atenção, parece-me que ele já passou. O que é qualquer cousa? Como é que ela passa? Como é por dentro o modo como ela passa? Ah. falemos, minhas irmãs, falemos alto, falemos todas juntas. O silêncio começa a tomar corpo, começa a ser cousa. Sinto-o envolver-me como uma névoa. Ah, falai, falai!...
- Para quê?... Fito-vos a ambas e não vos vejo logo. Parece-me que entre nós se aumentaram abismos. Tenho que cansar a idéia de que vos posso ver para poder chegar a ver-vos. Este ar quente é frio por dentro, naquela parte em que toca na alma. Eu devia agora sentir mãos impossíveis passarem-me pelos cabelos — é o gesto com que falam das sereias. Ainda há pouco, quando eu não pensava em nada, estava pensando no meu passado.
 - Eu também devia ter estado a pensar no meu.
 - Eu já não sabia em que pensava... No passado dos outros talvez..., no passado de gente maravilhosa que nunca existiu... Ao pé da casa de minha mãe corria um riacho. Por que é que correria, e por que é que não correria mais longe. ou mais perto? Há alguma razão para qualquer coisa ser o que é? Há para isso qualquer razão verdadeira e real como as minhas mãos?
 - As mãos não são verdadeiras nem reais. São mistérios que habitam na nossa vida... às vezes, quando fito as minhas mãos, tenho medo de Deus. Não há vento que mova as chamas das velas, e olhai, elas movem-se. Para onde se inclinam elas? Que pena se alguém pudesse responder! Sinto-me desejosa de ouvir músicas bárbaras que devem agora estar tocando em palácios de outros continentes. É sempre longe da minha alma."

[Fernando Pessoa - o eu profundo e outros eus]

Da imperfeição


"Desenganemo-nos da esperança, porque trai, 
do amor, porque cansa, 
da vida, porque farta, e não sacia,
e até da morte, porque traz mais do que se quer e menos do que se espera. 
Desenganemo-nos, ó Velada, do nosso próprio tédio, porque se envelhece de si próprio e não ousa ser toda a angústia que é. 

Não choremos, não odiemos, não desejemos.

Cubramos, ó silenciosa, com um lençol de linho fino o perfil hirto da nossa Imperfeição."

[Fernando Pessoa - o eu profundo e outros eus]

sábado, 3 de agosto de 2013

Da consciência

"Reparávamos de repente, como quem repara que vive, que o ar estava cheio de cantos de ave, e que, como perfumes antigos em cetins, o marulho esfregado das folhas estava mais entranhado em nós de que a consciência de o ouvirmos. E assim o murmúrio das aves, o sussurro dos arvoredos e o fundo monótono esquecido do mar eterno punham à nossa vida abandonada uma auréola de não a conhecermos. Dormimos ali acordados dias, contentes de não ser nada, de não ter desejos nem esperanças, de nos termos esquecido da cor dos amores e do sabor dos ódios.

Ali vivemos horas cheias de um outro sentirmo-las, horas de uma imperfeição vazia e tão perfeitas por isso, tão diagonais à certeza retângula da vida. Horas imperiais depostas, horas vestidas de púrpura gasta, horas caídas nesse mundo de outro mundo mais cheio de orgulho de ter mais desmanteladas angústias.
E doía-nos gozar aquilo, doía-nos.

Porque apesar do que tinha de exílio calmo, toda essa paisagem nos sabia a sermos deste mundo, toda ela era úmida de um vago tédio, triste e enorme e perverso como a decadência de um império ignoto. Nas cortinas da nossa alcova a manhã é uma sombra de luz. Meus lábios, que eu sei que estão pálidos, sabem um ao outro a não quererem ter vida.

O ar do nosso quarto neutro é pesado como um reposteiro. A nossa atenção sonolente ao mistério de tudo isto é mole como uma cauda de vestido arrastada num cerimonial no crepúsculo. Nenhuma ânsia nossa tem razão de ser. Nossa atenção é um absurdo consentido pela nossa inércia alada. Não sei que óleos de penumbra ungem a nossa idéia do nosso corpo. O cansaço que temos é a sombra de um cansaço. Vem-nos de muito longe, como a nossa idéia de haver a nossa vida. Nenhum de nós tem nome ou existência plausível. Se pudéssemos ser ruidosos ao ponto de nos imaginarmos rindo, riríamos sem dúvida de nos imaginarmos vivos. O frescor aquecido dos lenços acaricia-nos (a ti como a mim decerto) os pés que se sentem, um ao outro nus."

[Fernando pessoa - O eu profundo e outros eus]

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Do exílio

"Éramos impessoais, ocos de nós, outra coisa qualquer. Éramos aquela paisagem esfumada em consciência de si própria. E assim como ela era duas — de realidade que era, e ilusão — assim éramos nós obscuramente dois, nenhum de nós sabendo bem se o outro não era ele-próprio, se o incerto outro vivera. Quando emergimos de repente ante o estagnar dos lagos sentíamo-nos a querer soluçar. Ali aquela paisagem tinha os olhos rasos de água, olhos parados cheios de tédio inúmero de ser. Cheios, sim, do tédio de ser qualquer coisa, realidade ou ilusão — e esse tédio tinha a sua pátria e a sua voz na mudez e no exílio dos lagos... E nós, caminhando sempre e sem o saber ou querer, parecia ainda assim que nos demorávamos à beira daqueles lagos, tanto de nós com eles ficava e morava, simbolizado e absorto. "

[Fernando Pessoa - o eu profundo e outros eus]

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Dos ecos

"E assim nós morremos a nossa vida, tão atentos separadamente a morrê-la que não reparamos que éramos um só, que cada um de nós era uma ilusão do outro, e cada um, dentro de si, o mero eco do seu próprio ser.(...) "
Ou de outros.

[Fernando Pessoa - O eu profundo e outros eus ]