terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Da rosa

'' Nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além
de qualquer experiência, teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto

teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a Primavera abre
(tocando sutilmente, misteriosamente) a sua primeira rosa

ou se quiseres me ver fechado, eu e
minha vida nos fecharemos belamente, de repente,
assim como o coração desta flor imagina
a neve cuidadosamente descendo em toda a parte;

nada que eu possa perceber neste universo iguala
o poder de tua imensa fragilidade: cuja textura
compele-me com a cor de seus continentes,
restituindo a morte e o sempre cada vez que respira

(não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre; só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas!'' 


[E.E Cummings.]

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Da presença de hoje

"A morte não é nada,
Eu estou apenas noutro lado,
Eu sou eu, tu és tu,
Aquilo que éramos um para o outro,
Continuaremos a ser
Chama-me, como sempre me chamaste,
Fala-me, como sempre me falaste,
Não mudes o tom da tua voz
Nem faças um ar solene ou triste
Continua a rir daquilo que juntos nos fazia rir
Diverte-te, sorri, pensa em mim, reza por mim,
Que o meu nome seja pronunciado em casa,
Como sempre foi
Sem qualquer ênfase, sem qualquer sombra.
A vida significa o que sempre significou,
E continua a ser o que sempre foi,
Porque é que eu estando longe do teu olhar,
Estaria longe do teu pensamento?
Espero-te, não estou muito distante
Somente do outro lado do caminho,
Como vês, tudo está bem..."
[Henry Scott Holland - A morte não é nada]

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Da porta

"Achar
a porta que esqueceram de fechar.
O beco com saída.
A porta sem chave.
A vida."

[Paulo Leminski]

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Heaven knows Im miserable now

"Eu te escrevi uma carta. Eu te escrevi uma carta porque eu acho que a gente podia conversar. Você é um homem-muito-ocupado-do-tipo-que-corre-demais (eu sei), e okay, cartas de amor são ridículas (já nos alertou o poeta), mas sabe como é, eu te escrevi uma carta pra tentar te falar.
E eu diria pessoalmente se você, ao fim do dia, apenas aparecesse. Chegasse assim, sem avisar, na porta do meu prédio (apartamento 403, lembra?) e me pedisse pra descer. Eu desceria as escadas de havaianas e teria há pouco tempo feito as unhas dos pés (de preto, esmalte preto). Por efeito providencial do vento, o meu coque caíria desfeito assim que eu chegasse na portaria e te encontrasse, pra que você então pudesse elogiar os meus cabelos mais uma vez. E porque o mundo gira perfeito, eu estaria vestindo o meu short jeans favorito (será que você ainda repara nas minhas pernas?) e aquela camiseta cinza que diz “Heaven knows I’m miserable now” (ah, o Morrissey nessas horas). E a gente caminharia às onze e meia da noite pela Real Grandeza até que nos sentássemos em uma mesa de madeira bamba na calçada de um boteco xexelento e eu pudesse então te dizer.
Eu pensei em te ligar, não fosse a minha ligação sempre encaminhada para a caixa de mensagens estando sujeita à cobrança após o sinal (ah, as cobranças e os sinais). Por que isso sempre? Por onde você anda? Subsolos? Cofres? Pensei também em te mandar uma mensagem, mas sei como é, você é um homem-muito-ocupado-do-tipo-que-corre-demais e talvez não veja a minha mensagem. Ou talvez a veja e a deixe pra depois – que é quando os homens muito ocupados resolvem as coisas não urgentes. Aliás, eu me pergunto se você faz mesmo o que eu acho que você faz ou se essa sua vida atribulada se deve ao fato de você trabalhar para a NASA, para a CIA ou coisa assim. Toda vez que você desaparece, eu me pergunto se você foi vítima de um ataque cardíaco, de uma abdução alienígena ou se resolveu escalar no Nepal, mas não, foi só o tempo que faltou (outra vez) pra nós dois.
Então eu te escrevi uma carta em 30 minutos, pra te falar uma coisa que resume os últimos 30 meses da minha vida (será o que chamam de crise dos 30?). Eu espero que você a leia e que saiba o que fazer com ela. E comigo. Eu desejo que a gente abra todos os parênteses e coloque também uns pingos nos i´s. É só uma carta, pode ficar sossegado. Mas, se alguma coisa der errado, e ao final da minha (sua) carta, você (mais uma vez) não souber o que fazer, eu só queria te dizer que, de longe, você é a coisa mais bonita que não me aconteceu na vida. Assim, acontecendo. Assim, sem acontecer. Só isso."
[Verônica Fantoni]

sábado, 10 de maio de 2014

Do dar

..."O que te posso dar é mais que tudo
o que perdi: dou-te os meus ganhos.
A maturidade que consegue rir
quando em outros tempos choraria,
busca te agradar
quando antigamente quereria
apenas ser amada.
Posso dar-te muito mais do que beleza
e juventude agora: esses dourados anos
me ensinaram a amar melhor, com mais paciência
e não menos ardor, a entender-te
se precisas, a aguardar-te quando vais,
a dar-te regaço de amante e colo de amiga,
e sobretudo força -- que vem do aprendizado.
Isso posso te dar: um mar antigo e confiável
cujas marés -- mesmo se fogem -- retornam,
cujas correntes ocultas não levam destroços
mas o sonho interminável das sereias."


[Lya Luft - canção na plenitude]

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Do bis

"sabendo
que assim dizendo
— poema —
estava te
matando
mesmo assim
te disse
sabendo
que assim fazendo
você estava durando
foi duro
mesmo assim
te trouxe
mesmo assim
te fiz
mesmo sabendo que ias
fugaz
ser infeliz
sempre infeliz
mesmo assim
te quis
mesmo sabendo
que ia
te querer
ficar querendo
e pedir bis"

[Paulo Leminski]

terça-feira, 22 de abril de 2014

Do mato

"Anos andando no mato, 
nunca vi um passarinho morto, 
como vi um passarinho nato. 
Onde acabam esses voos? 
Dissolvem-se no ar, na brisa, no ato? 
São solúveis em água ou em vinho? 
Quem sabe, uma doença dos olhos. 
Ou serão eternos os passarinhos?"

[Paulo Leminski]

Dalista

"Faça uma lista de grandes amigos
Quem você mais via há dez anos atrás
Quantos você ainda vê todo dia
Quantos você já não encontra mais
Faça uma lista dos sonhos que tinha
Quantos você desistiu de sonhar!

Quantos amores jurados pra sempre
Quantos você conseguiu preservar
Onde você ainda se reconhece
Na foto passada ou no espelho de agora
Hoje é do jeito que achou que seria?

Quantos amigos você jogou fora
Quantos mistérios que você sondava
Quantos você conseguiu entender
Quantos segredos que você guardava
Hoje são bobos ninguém quer saber
Quantas mentiras você condenava
Quantas você teve que cometer

Quantos defeitos sanados com o tempo
Eram o melhor que havia em você
Quantas canções que você não cantava
Hoje assovia pra sobreviver
Quantas pessoas que você amava
Hoje acredita que amam você"


[Oswaldo Montenegro]

Do abismo 2

"De ilusão em ilusão 
até a desilusão
é um passo sem solução
um abraço
um abismo
um soluço
adeus a tudo que é bom
quem parece são não é
e os que não patecem são
matar, a forma mais alta de amar,
matar em nós a vontade de matar,
voltar a matar a vontade,
matar, sempre, matar,
mesmo que, para isso
seja preciso todo nosso amar"

[ Paulo Leminski ]

segunda-feira, 21 de abril de 2014

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Do jovem

"Ele ainda era demasiado jovem para saber que a memória do coração elimina as coisas ruins mas amplia as coisas boas, e que graças a este artifício conseguimos suportar o peso do passado. "

[Gabriel Garcia Marquez - o amor nos tempos do cólera ]

Do desencanto

"Mas ao contrário daquela vez não sentiu agora a comoção do amor e sim o abismo do desencanto. Num instante teve a revelação completa da magnitude do próprio engano, e perguntou a si mesma, aterrada, como tinha podido incubar durante tanto tempo e com tanta ferocidade semelhante quimera no coração."

[Gabriel García Márquez - O amor nos tempos do cólera]

terça-feira, 15 de abril de 2014

Do que eu quero

"Tem gente que escreve, tem gente que fala demais. Tem gente que fala cuspindo. Tem gente que mente, que abandona, que não sabe dançar. Tem gente que não tem graça, que tem bafo, que não gosta de animais, ou de viajar. Tem gente que não come sushi, que não gosta de Carnaval. Tem gente que não consegue esquecer, ou até lembrar. Tem gente pra tudo na vida, dos hábitos mais irritantes e das surpresas mais inesperadas que se pode imaginar. Precisa-se de dois para formar um par. Um par de seres defeituosos e confusos. E isso vale, será?
No que deve consistir, afinal, esse negócio sem volume, sem cor, sem aroma, mas que vive encravado na alma, que nos faz enxergar todos os defeitos, observar todos os trejeitos, e ainda assim, querer ficar? Juntando loucuras, unindo remendados e cansados corações.
Tentar mais uma vez, porque vale a pena.  
Amar."
[Daniela Antoniassi]

domingo, 6 de abril de 2014

Do fundo

"No fundo, no fundo,

bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhas pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas."


[Paulo Leminski ]

sábado, 5 de abril de 2014

No excuses



Do que eu escolho

http://poraosombrio.blogspot.com.br/2008/12/das-escolhas.html

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Do hackear

... Você
precisa saber da piscina,
da margarina,
da gasolina,
da Carolina

Você
PRECISA saber de mim??
Baby,
Baby
Eu sei que é assim..."

[Caetano Veloso - Baby]

sábado, 29 de março de 2014

Do segredo

"Não há verso,
Tudo é prosa,
passos de luz
num espelho,
verso,
ilusão de ótica, 
verde, 
o sinal vermelho. 

Coisa 
feita de brisa,
de mágoa 
e de calmaria,
dentro 
de um tal poema,
qual poesia 
pousaria?
Eu, hoje, acordei mais cedo e, 
azul, tive uma idéia clara.
Só existe um segredo:
Tudo está na cara."

[Paulo Leminski]

Do negro

"Que somos nós? Navios que passam um pelo outro na noite
Cada um a vida das linhas das vigias iluminadas
E cada um sabendo do outro só que há vida lá dentro e mais nada
Navios que se afastam ponteados de luz na treva
Cada um diminuindo para cada lado do negro
Tudo mais é a noite calada e o frio que sobe do mar."

[Fernando Pessoa - Álvaro de Campos]

Do fim

Após anos a fio, pra não falar em décadas de visitas semanais, tive enfim alta da terapia essa semana. A conclusão que cheguei, dinamismo da vida à parte, não estou mais ou menos perdida do que estive no primeiro dia em que pisei naquele consultório. Não estou mais nem menos resolvida.
Apenas me conheço bem o suficiente a ponto de saber o que eu quero, o que eu consigo, o que eu to a fim de enfrentar, até onde vou, o que me mata de preguiça, o que não tenho forças mais, o que me move, o que vale a pena... Maturidade? Sei lá. Acho que entendimento. Consciência.

sexta-feira, 28 de março de 2014

Do que quero dizer não digo

Do ser

"Dizem que em cada coisa uma coisa oculta mora.
Sim, é ela própria, a coisa sem ser oculta,
Que mora nela.

Mas eu, com consciência e sensações e pensamento,
Serei como uma coisa?
Que há a mais ou a menos em mim?
Seria bom e feliz se eu fosse só o meu corpo -
Mas sou também outra coisa, mais ou menos que só isso.
Que coisa a mais ou a menos é que eu sou? 

O vento sopra sem saber.
A planta vive sem saber.
Eu também vivo sem saber, mas sei que vivo.
Mas saberei que vivo, ou só saberei que o sei?
Nasço, vivo, morro por um destino em que não mando,
Sinto, penso, movo-me por uma força exterior a mim.
Então quem sou eu?

Sou, corpo e alma, o exterior de um interior qualquer?
Ou a minha alma é a consciência que a força universal
Tem do meu corpo por dentro, ser diferente dos outros?
No meio de tudo onde estou eu?

Morto o meu corpo,
Desfeito o meu cérebro,
Em coisa abstracta, impessoal, sem forma,
Já não sente o eu que eu tenho,
Já não pensa com o meu cérebro os pensamentos que eu sinto meus,
Já não move pela minha vontade as minhas mãos que eu movo.

Cessarei assim? Não sei.
Se tiver de cessar assim, ter pena de assim cessar,
Não me tomará imortal."

[Fernando Pessoa - Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"]

quarta-feira, 26 de março de 2014

Do desaparecer

"Before i disapear
Whisper in my ear
Give me something to echo
In my unknown futures ear"

[Eddie Vedder]

sábado, 22 de março de 2014

Do abotoar

"Vai-se a primeira pomba despertada…
Vai-se outra mais… mais outra… enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada.

E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada.

Também dos corações onde abotoam,
Os sonhos, um por um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;

No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem… Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais."


[Raimundo Correia]

quinta-feira, 20 de março de 2014

Da janela

"...Talvez eu seja a única responsável por essa história toda, mas ainda acho triste um mundo em que as pessoas, por pudor, reprimem o que são. Porque, em nossa sociedade, não nos é dado o direito de sermos menos do que perfeitos. Se não sou a Clarice Lispector, é melhor que eu nem escreva! Devemos ser ótimos sempre, bem sucedidos em todos os aspectos, irretocáveis – e até beleza e juventude parece que viraram obrigação. É proibido envelhecer, veja só! Nós, tão vulneravelmente humanos, estamos condenados a sermos super-homens e mulheres-maravilhas.
Por isso vejo como sinal de amadurecimento minha ousadia tímida de escancarar janelas. De dar a cara à tapa. Porque, definitivamente, não sou Clarice, não sou Rosa, não sou Machado. Mas isso não significa que eu não tenha coisas a dizer e que não deva dizê-las, por vaidade ou medo de rejeição.
Cada vez mais, aprendo o quanto é importante que tenhamos nossas janelas abertas para a vida, porque ela nos presenteia, sim, se estivermos atentos e formos flexíveis o bastante para deixá-la entrar pelos batentes. Na minha história, nada do que planejei deu tão certo quanto as coisas imprevistas que a vida me trouxe e eu soube receber de coração.
E é assim, com o coração aberto, que me atrevo a dar-lhes as melhores palavras que eu tiver. Que milagroso será se elas puderem ser recebidas por outros corações abertos.
Então convido vocês a fazerem também aquilo que de gostam porém se envergonham, por talvez não serem suficientemente bons. Escrevam, dancem ou cantem, se desejarem isso. Porque aceitar-se imperfeito e ser capaz de admitir os próprios desejos é aquilo que, em primeiro lugar, nos torna seres livres."
[Daniela Antoniassi]

Do abismo 1

"É curioso isso de transformar nossas vidas e, assim, transformar a nós mesmos. Mesmo que queiramos, e muito, geralmente temos medo.
Então vamos dando passinhos miúdos e cuidadosos, como quem desce uma escada perigosa na escuridão absoluta: vamos agarrados a um corrimão, se houver, ou tateando paredes, ou até mesmo descemos sentados, pra poder sentir melhor os degraus que não vemos ou o abismo que não sabemos o que é.
Inventamos corrimãos, inventamos rotas de regresso, para nos sentirmos seguros, para aliviar-nos o medo do novo com a ficção de que sempre podemos voltar atrás se, por acaso, o abismo não nos agradar.
Mas todos esses artifícios de segurança não passam de mentiras que contamos a nós mesmos. A verdade é que do abismo não se pode voltar. A verdade é quase nunca há regresso. Descer um poço é fácil, remota é a possibilidade de saltar de volta à superfície. A tal da entropia que está em tudo.
Acontece que o abismo pode ser bom, e que o fundo do poço quase nunca é o fim, se nele pudermos encontrar misteriosas passagens para outras superfícies, outros mundos.
Talvez o medo seja mesmo inevitável, e inevitável também seja esse nosso titubear. Mas é interessante percebermos como o medo vai se dissipando a medida que seguimos adiante, a medida que a paisagem muda, e que já não somos mais os mesmos.
Constatar que não há regresso não parecerá terrível quando sentirmos que, ainda que pudéssemos voltar atrás, já não o faríamos.
Seja qual for o abismo descoberto."
[Daniela antoniassi]

quarta-feira, 19 de março de 2014

Dali

Eu sonho. Você vive.
Eu sinto. Você sabe.
Eu sei. Você finge.
Eu tento. Você desiste.
Eu quero. Você quis.

Eu insisto.

Eu falo. Você nega.
Eu penso. Você pinta.
Eu escrevo. Você pensa.
Eu fujo. Você fica.
Eu calo. Você, calo.

Eu insisto.

Eu escolho. Você não mais.
Eu sumo. Você muda.
Eu volto. Você some.
Eu vou. Você povoa.
Eu, só. Você junto, sempre.

Eu desisto.


sábado, 15 de março de 2014

segunda-feira, 10 de março de 2014

Adeus você



...pra que minha vida siga adiante.

domingo, 9 de março de 2014

Das nossas escolhas

"Não acredito em almas gêmeas, em feitos um para o outro, em metades da laranja. Penso que, nesse mundão de sete bilhões, o par ideal pode ser não uma, mas uma série de pessoas compatíveis com cada um de nós.
É claro que, durante nossa curta existência, não vamos sequer cruzar com todos aqueles que poderiam ser o grande amor de nossas vidas. E são bem práticos muitos dos fatores que reduzem ao extremo nosso leque de potenciais amados-amantes.
A questão geográfico-logística é quiçá a que mais acarreta impossibilidade de encontro de pares românticos. Imagine quantos casais ideais jamais poderão existir pelo simples fato de um e outro terem nascido em extremos diferentes do globo. Incontáveis histórias de amor não chegarão a acontecer e nunca poderão ser contadas.
Ainda quando a distância geográfica não for tão grande, outros problemas, até de cunho político, podem atrapalhar o encontro de dois pombinhos. Acontecerá, por exemplo, se ele nascer na Coréia do Norte e ela, na Coréia do Sul.
Mesmo que globalização e tecnologia deem uma mãozinha, impulsionando circulação e contato de pessoas, imagine quantos romances, unindo viajantes mundo afora, não terminarão por conta dos preços das passagens aéreas, das ligações telefônicas, ou da chatice que é namorar por Skype. 
Uma infinidade de elementos jogam contra o encontro e o reconhecimento de um par amoroso: diferença de classe social, diferença cultural, formato desagregador das cidades, imposiçãoo de padrões estéticos, e por vai. Tudo isso sem falar no Deus Acaso, que é quem deve permitir a intersecção entre dois caminhos. Mas, além de compatibilidade e possibilidade de encontro, há um outro ingrediente nessa receita incerta de amor que, para mim, é o mais complexo e improvável de todos. O tal do, quase intraduzível, timing. O tal do, caprichoso, momento certo.
O encontro entre duas pessoas, para frutificar uma relação, precisa se dar no exato momento em que ambas estão prontas e dispostas a mergulhar no abismo uma da outra. 
Há de existir essa rara sincronia, coincidência entre o tempo certo de um e o tempo certo de outro. Tão rara que chega a parecer mágica. Tão mágica que faz o Deus Acaso perder muitos partidários-devotos para o Deus Destino.
Só no momento certo para cada um e para ambos é que a comunicação entre dois seres se faz efetiva. 
Só no momento certo pode se produzir um diálogo eficiente em lugar de dois monólogos surdos. 
Momento certo é aquele em que há chance de que duas pessoas se entendam, porque existe, em primeiro lugar, disposição de cada uma delas de buscar o entendimento.
O momento de entender é também o momento de querer e de poder entender. Tem a ver com aquilo a que chamam maturidade. E maturidade, a propósito, não está necessariamente relacionada à passagem do tempo ou ao acúmulo de experiências. Chega antes para alguns, depois para outros, ou pode até nunca chegar.
Aqui pra mim, maturidade talvez signifique capacidade de escolher. Escolher amar alguém. Escolher deixa-se amar por alguém. Escolher querer que uma relação funcione. Escolher doar-se a uma relação, para que ela funcione.
Escolher amar alguém é escolher dedicar-se a alguém, mesmo que sejam tantos os pares potencialmente compatíveis, mesmo que sejam infinitas as possibilidades que precedem cada uma de nossas escolhas. É aceitar o outro a despeito das suas imperfeições; é olhar com ternura pra tudo aquilo que o outro tem de mais humano.
Sabemos que o momento certo chega pra nós quando nos reconhecemos capazes de amar sem idealizar, sem esperar do outro que responda a todas as nossas carências, que preencha todos os nossos vazios. 
No momento certo, somos capazes de amar as fraquezas, mais de que as virtudes. Amar o ordinário ou o feio, mais do que o exclusivo ou o belo.
Quando olhamos pra trás, damo-nos conta de que boa parte das nossas histórias de amor fracassadas poderiam ter sido diferentes, se na época estivéssemos prontos. Às vezes, relações não dão certo por falta de capacidade de compreender ao outro e a si próprio. Outras vezes, é um coração machucado ou confuso que faz daquela uma má hora para amar. Não acredito em almas gêmeas, em amor perfeito, em o-que-tiver-que-ser-será. 
Mas acredito em momento certo: o momento em que escolhemos e somos escolhidos.
Não escolhemos alguém porque seja o único, mas é verdade que alguém se torna único por ter sido o objeto de nossa escolha. E aí sim, a história de amor que aconteça será única, diferente de qualquer outra que já existiu em qualquer outro tempo e lugar. Será a única história possível entre tantas histórias possíveis."
[Daniela Antoniassi]

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Da razão


"Bem-te-ouvi, bem-te-ouvi com orelhas aladas
atentas ao verbo em voo de retorno
quando eras ninho. Vi-te, e, ao ver-te,
o pouso foi lento, sem pesar no corpo
deitei-me ao lado para em teu sono
encontrar descanso da viagem longa.

Vi-te, e abri meu ser emudecido para
esferas mais altas que os voos labirínticos,
nos espirais da vida onde busquei somente
razão para sofrer antes do teu chamado."
[Fabio Deflon]

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Do amor de agora

"Quando o amor perde o cabaço, acabou. Amor tem que ser virgem, sonhar, sorrir de canto, meio envergonhado, acreditando que o mundo é bom. Aquele feeling inocente, a sensação de uma criança de dez anos que tem certa noção do que é tesão, mas não traz maldade. Amor e cabaço precisam estar de mãos dadas. Quando o amor perde a castidade, desfaz-se. É quando você se olha no espelho no dia seguinte e sente que algo que estava ali foi embora. E nunca mais voltará. Nunca mais. E perde a ingenuidade. Amor descabaçado. O banho morno demorado depois do sexo febril. E virou adulto. O amor. Tomando pílula, usando camisinha, indo ao ginecologista. É assim que é. E é assim que acontece quando se cresce. O amor endurece, enruga, cria pé de galinha. Depois disso não se tem mais paciência pra essa coisa infantil. E não sabia se iria conseguir amar desse jeito, porque o seu amor ainda usava fraldas. Não. Não sabia se conseguiria ver o seu não primeiro amor ser tomado assim, violentamente. Não teve nem um jantar, um vinhozinho, uma conversa mole ao pé do ouvido, não. Foi tudo assim na surdina da noite, rápido, como o movimento frenético de quadris adolescentes que não sabem a hora de parar. E continuavam horas a fio, metendo. Enfiando um no coração do outro a estaca rígida desse amor de agora."

[Ana Paula Magalhães]

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Da caligrafia

"E escrevo como as aves redigem o seu voo: sem papel, sem caligrafia, apenas com luz e saudade. Palavras que, sendo minhas, não moraram nunca em mim."

[Mia Couto]

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Do resgate

"Façamos que conversamos 
Ou vão pensar que morremos, e nos ressuscitar.
Hora, acene com brilho.
Nos resgate do resgate."

[Laura Riding]