"Reparávamos de repente, como quem repara que vive, que o ar estava cheio de cantos de ave, e que, como perfumes antigos em cetins, o marulho esfregado das folhas estava mais entranhado em nós de que a consciência de o ouvirmos. E assim o murmúrio das aves, o sussurro dos arvoredos e o fundo monótono esquecido do mar eterno punham à nossa vida abandonada uma auréola de não a conhecermos. Dormimos ali acordados dias, contentes de não ser nada, de não ter desejos nem esperanças, de nos termos esquecido da cor dos amores e do sabor dos ódios.
Ali vivemos horas cheias de um outro sentirmo-las, horas de uma imperfeição vazia e tão perfeitas por isso, tão diagonais à certeza retângula da vida. Horas imperiais depostas, horas vestidas de púrpura gasta, horas caídas nesse mundo de outro mundo mais cheio de orgulho de ter mais desmanteladas angústias.
E doía-nos gozar aquilo, doía-nos.
Porque apesar do que tinha de exílio calmo, toda essa paisagem nos sabia a sermos deste mundo, toda ela era úmida de um vago tédio, triste e enorme e perverso como a decadência de um império ignoto. Nas cortinas da nossa alcova a manhã é uma sombra de luz. Meus lábios, que eu sei que estão pálidos, sabem um ao outro a não quererem ter vida.
O ar do nosso quarto neutro é pesado como um reposteiro. A nossa atenção sonolente ao mistério de tudo isto é mole como uma cauda de vestido arrastada num cerimonial no crepúsculo. Nenhuma ânsia nossa tem razão de ser. Nossa atenção é um absurdo consentido pela nossa inércia alada. Não sei que óleos de penumbra ungem a nossa idéia do nosso corpo. O cansaço que temos é a sombra de um cansaço. Vem-nos de muito longe, como a nossa idéia de haver a nossa vida. Nenhum de nós tem nome ou existência plausível. Se pudéssemos ser ruidosos ao ponto de nos imaginarmos rindo, riríamos sem dúvida de nos imaginarmos vivos. O frescor aquecido dos lenços acaricia-nos (a ti como a mim decerto) os pés que se sentem, um ao outro nus."
[Fernando pessoa - O eu profundo e outros eus]
sábado, 3 de agosto de 2013
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