terça-feira, 5 de agosto de 2008

Dos pacientes

Quando está pagando a consulta, o paciente quer e tem o direito de se queixar da ponta do fio de cabelo que está fraca até o dedinho do pé esquerdo que está formigando. Isso passando pela dor que sobe e desce, pela fincada na garganta, pelo problema do ranço com carne de porco e ainda a maldita ursa na boca do estrombo...

Já quando estão sendo examinados por alguma outra razão, especialmente exames periódicos do trabalho em que a "consulta" anual é paga pela empresa, tudo some. Tá todo mundo ótimo. Aliás, ótimo não, normal.
Normal.
Essa é a resposta de 99,6% dos pacientes.

- Tá sentindo alguma coisa hoje, senhor Guiomar?

- Não, normal.

A situação vivenciada repetidamente além de a primeira vista me divertir, me fez questionar o que leva alguém a responder "normal" à pergunta acima...
Talvez o medo de dizer a verdade e ser despedido:

- sim doutora, tô sentindo uma dor na coluna insuportável!

Talvez a ausência de outras verdades pela falta de confiança e intimidade obviamente impossibilitada, pra não dizer destruída, em uma relação médico-paciente de 5 minutos:

- sim doutora, tô sentindo muita falta do meu namorado que me trocou por outra.

ou quem sabe:

- sim doutora, minha vida tá péssima e tô sentindo uma tremenda vontade de morrer, já até comprei a corda!

É, acho que "normal" = "estou me sentindo como de costume". Mas não necessariamente esse costume significa não estou sentindo nada. No fundo eles estão é querendo transmitir uma ausência de sentimentos/sensações diferentes dos habituais.



Ainda hoje, no mesmo exame periódico de 5 minutos, em que mal se trocam palavras, e foram ouvidos muitos "normal" como resposta, uma paciente de 42 anos me causou admiração, exatamente por sua resposta fugir do normal.

- Bom dia, Dona H. , a senhora está se sentindo bem?

- Estou incrivelmente bem, doutora. Graças a Deus.

- Que bom, Dona H.! Fico feliz pela senhora.

Tal resposta me surpreendeu.

Me perguntei e logo perguntei a ela a razão de tanto bem estar, no que ela me contou que realizou uma colecistectomia videolaparoscópica (cirurgia de retirada da vesícula), e no fim da operação, o cirurgião ao realizar uma vistoria na cavidade abdominal antes de fechar, visualizou uma massa no ovário esquerdo. Na mesma cirurgia o ovário foi retirado e biopsiado, e o resultado foi um câncer de ovário. Posteriormente o útero foi retirado, mas felizmente não foram encontradas metástases. Mas para evitar que ainda estejam circulando células malignas que posteriormente podem se implantar e crescer em algum outro lugar, ela está passando por sessões de quimioterapia. Essas por sua vez à fizeram engordar, perder os cabelos e a vaidade. Mas não fizeram Dona H. perder a esperança e a alegria por estar viva. Por ter encontrado o tumor antes de ser tarde demais, antes de ser possível fazer alguma coisa. Com sua descabelada peruca levemente ruiva, Dona H. me passou a lição de que devemos ver o lado bom de todas as coisas, e não apenas levar uma vida normal, com respostas normais.


E se ao reler vejo que possivelmente não fez o menor sentido nada do que escrevi, azar. Isso aqui é instrumento de catarse. E não pra fazer lógica pra alguem. E tenho dito.

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