quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Eu quero o delírio

Eu quero o delírio.

Eu sou assim.

Não pretendo a integração, mas a abertura e a busca. Encontrar pode ser impossível ou desinteressante. Quero o pressentimento: comprimir a tecla do computador e explodir o ponto e arquear o contorno, varando os limites que a vida há de preencher e o sonho tornará possível.

Quero o delírio que faça as utopias virem sentar-se na minha varanda e escrever no meu computador quando a razão estiver cansada, quando a técnica parecer frívola, ou quando eu estiver descrente.

Posso lhes dizer que somos muitos: em cada um de nós outros esperam apenas o momento de saltar fora, tirar a máscara e revelar o que talvez nos amedronte. E diremos:

- Mas isso, isso aí, também sou eu?

Preciso admitir que a ambivalência nos salva de morrermos na poeira da mesmice. Também admito que seria mais fácil ser sempre o mesmo,seria mais doce levantar cada manhã sem conflito e morrer enfim sem ter jamais duvidado.

Mas não é tão simples. Desculpem, mas não somos isso.

Posso falar por mim ao menos, esta que escreve de um jeito e vive de outro, pensa de um modo mas faz diferente, tendo a marca da incoerência na testa e no coração a miragem de uma explicação para todos os desencontros.

Escuto o meu interior, onde personagens e narrativas aguardam que eu lhes confira a sua falsa realidade. Não falo de personagens e frases apenas, mas da consciência que procura motivo e sentido.

Estou bem acompanhada: comigo estão os meus irmãos, gente da minha raça, todos os que entendem que inventar ou constatar não faz a menor diferença. Somos os doidos, os palhaços, os atores de nossa própria vida: escrevemos com sangue - nas paredes, nas páginas e nas telas dos computadores: tudo só existe na medida em que o tiramos das nossas tripas e parimos do nosso sonho.

Mas também sou uma mulher do meu tempo, e dele quero dar testemunho do jeito que posso: na elaboração das minhas fantasias, mas igualmente escrevendo sobre dor e perplexidade, sobre doença e morte, a palavra na hora errada e o silêncio na hora em que teria sido melhor falar - mas a gente não sabia.

E escrevo sobre sermos responsáveis e inocentes em relação ao que acontece e ao legado que deixamos. A ambivalência que atormenta, por outro lado levanta a poeira da resignação - e faz aparecer o nosso rosto.

E nos salva.

[LUFT, Lya.
Pensar é Transgredir. São Paulo: Record, 2003.]


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Outro texto dos meus guardados. Não meu, mas sinto como se fosse.

E não morri de calor. Ainda.

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